Um marco regulatório claro é fundamental para a promoção e proteção de vários direitos no contexto digital. O Marco Civil da Internet (MCI) traz uma forte base para a garantia dos direitos humanos na rede, tendo o direito à liberdade de expressão como um dos seus pilares. Seu texto inovador e progressista traz proteção verdadeira ao conceito de neutralidade da rede, além de garantias à privacidade na internet, ao desenvolvimento da internet, da responsabilidade de provedores de serviços e, até mesmo, do estimulo de práticas de inclusão digital e ampliação de e-gov.
No entanto, uma lei adequada é apenas um passo para efetiva concretização do direito fundamental à liberdade de expressão. O monitoramento de como as leis são aplicadas, bem como as violações que vêm ocorrendo, são essenciais para assegurar a correta aplicação e os impactos dos dispositivos legais que estão no texto. Por isso, é importante notar que alguns trechos do MCI ainda carecem de regulamentação para que sua implementação ocorra de uma forma adequada. Entre eles, os que abordam a questão das exceções técnicas da neutralidade de rede, do respeito à privacidade e do desenvolvimento da internet. Apesar disso, a aplicação da lei não é completamente dependente da regulamentação, jás que as regras gerais já estão estabelecidas, principalmente nas áreas que dizem respeito aos provedores de serviços de internet e as perspectivas e diretrizes para os avanços no uso e na estrutura de internet no Brasil.
A partir dessas premissas, buscamos acompanhar e avaliar a forma como os direitos assegurados estão sendo aplicados no MCI. Avaliamos os possíveis avanços e retrocessos trazidos pela lei para o Judiciário, o setor privado, o Governo e a sociedade, relacionando com os diversos direitos presentes na lei. Em geral, observou-se que, apesar de alguns avanços, as discussões desencadeadas pela falta de regulamentação ainda levantam várias questões para aqueles que defendem a liberdade de expressão, a proteção da privacidade e o direito ao acesso à internet.
No que diz respeito às regras gerais para remoção de conteúdo e responsabilidade dos provedores, o MCI estabeleceu que os provedores não têm responsabilidade sobre a questão, com exceção do caso da existência de uma ordem judicial. Neste um ano de vigência da lei, a ARTIGO 19 Brasil não localizou muitas situações em que os prestadores de serviços foram punidos por causa de conteúdo publicado por terceiros, tirando casos específicos contidos nas exceções da lei.
Um dispositivo interessante implementado pelo Marco Civil é o que responsabiliza provedores subsidiariamente por um conteúdo de terceiros em casos específicos. Ele pode ser aplicado quando provedores ignorarem notificações para a remoção de conteúdo que viole a intimidade ou a privacidade sexual de um indivíduo, prática bastante comum nos dias de hoje. Dados da organização Safernet sobre requisições de aconselhamento psicológico sugerem um aumento nos casos registrados nos últimos dois anos, sendo que 81% desses casos foram registrados por mulheres.
Mais recentemente, o Projeto de Lei 215/2015, alcunhado de “PL Espião”, e que levou a sociedade civil a uma campanha contra a sua aprovação, pretende criar a possibilidade do chamado “direito ao esquecimento”, ideia esta que ainda não foi discutida devidamente no país. O texto, apesar de fazer com que as decisões sejam tomadas de acordo com procedimentos legais, representa uma grave ameaça ao direito à liberdade de expresão e do direito à memória, além de ser um retrocesso para o texto do MCI.
No que diz respeito à privacidade, o Projeto de Lei 215/2015 também apresenta grandes problemas, já que obrigaria os provedores a coletar, armazenar e organizar dados pessoais – como e-mail, números de telefone, números de documentos – que poderiam ser fornecidos a autoridades sem a necessidade de uma ordem judicial. Trata-se de uma afronta ao direito à privacidade, ao anonimato e aos hábitos tradicionais de navegação na internet que conhecemos.
Questões relacionadas à privacidade na internet foram uma grande preocupação durante a fase de discussão do MCI e que foram cunhados no texto final. Há artigos na lei bastante claros que estabelecem os direitos dos usuários no que dizem respeito à privacidade e à proteção de dados pessoais, que deve ser clara nos termos de serviço de qualquer atividade prestada na internet, sendo que a informação sobre a coleta, armazenamentos, processamento e proteção deve estar explícita. No que diz respeito ao acesso a dados pessoais armazenados após autorização judicial, há poucos casos de decisões judiciais baseadas no MCI que negaram o acesso a dados pessoais e ao IP de usuários de um serviço à Polícia Federal. A ARTIGO 19 não pôde identificar casos relevantes que mostrem o controle do acesso à informação de dados privados de comunicação.
O acesso e o desenvolvimento da internet no Brasil está estabelecido no Marco Civil como um dos seus objetivos, sendo inclusive uma responsabilidade do Estado. A lei menciona de forma bastante clara que o acesso à internet é uma condição para a garantia de direitos cidadãos básicos. De acordo com dados obtidos em uma pesquisa da Cetic.br em 2014, a proporção de acessos individuais diários alcançou 71% dos brasileiros em 2013 e aumentou para 80% em 2014. Esses números incluem todos os tipos de acesso, variando do acesso domiciliar ao acesso pelo celular. Esses dados ainda contrastam com a proporção de domicílios com acesso à internet, mas mostra um progresso relativo quando comparado com os números de 2014. Não considerando os acessos por celular, 43% dos domicílios brasileiros tinham acesso à internet em 2013 enquanto que, em 2014, 50% das casas tinham acesso à banda larga.
Para pressionar o governo a garantir o acesso à internet a todo cidadão, organizações da sociedade civil vêm se mobilizando em torno de uma campanha que tem como principal objetivo defender que o serviço de acesso à internet deva ser ofertado em regime público, como ocorre com outros serviços essenciais no país. Isso levaria o Estado a firmar um compromisso de oferecer internet para toda a população, independentemente de acordos comerciais ou a possibilidade de retorno financeiro. A ARTIGO 19 Brasil não identificou avanços para a realização da essencialidade do serviço da internet aos brasileiros desde a aprovação do MCI. No entanto, o governo parece estar tentando avançar na área da inclusão digital, visando reduzir as desigualdades, especialmente entre as diferentes regiões do país, ao acesso e uso das tecnologias de informação. Para além dos programas governamentais que já incluem esse objetivo, o Ministérios das Comunicações criou uma nova política de inclusão digital. Como apresentadas, as ações devem se concentrar nos grupos excluídos digitalmente e serem tocadas por meio de políticas “territoriais”, promovendo assim um diálogo maior entre políticas federais e iniciativas estaduais e locais.
O MCI garante a neutralidade da rede e a igualdade de tratamento a pacote de dados, assegurando nenhuma distinção de conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. A questão foi um dos principais tópicos de discussão do texto aprovado. Apesar de a neutralidade da rede estar sendo respeitada nos planos de internet fixa, atualmente no Brasil os serviços de bandas 3G e 4G funcionam com o chamado “zero-rating” para o acesso de serviços populares como WhatsApp, Facebook e Twitter.
Há ainda a possibilidade iminente da implementação do programa chamado Internet.org, de autoria do Facebook. Esse aplicativo permite acesso a um número limitado de serviços, sem a presença de imagens de alta resolução ou de tráfego de vídeos, que passam pelo crivo da plataforma antes de estarem disponíveis. A prática de discriminação de pacote de dados contida no “zero rating” e no internet.org é ilegal em si. No entanto, existe a necessidade de uma análise mais constante e profunda dessas práticas que são defendidas pelo setor privado e que deveria ser tratada de forma apropriada pelo texto regulatório.
Alguns outros direitos são assegurados pela lei, como as garantias da expansão dos serviços e-gov e da inclusão dos cidadãos na criação de leis e políticas públicas, via mecanismos de consulta e participação on-line. Algumas iniciativas têm mostrado resultados promissores, permitindo diferentes iniciativas que funcionam para promover a participação social pela internet, como o próprio processo de elaboração do MCI. Apesar disso, retrocessos puderam ser constatados em algumas áreas. Um deles diz respeito à adoção de softwares e ferramentas livres e de políticas de dados abertos, algo que o MCI recomenda em seu texto. O governo brasileiro, no entanto, decidiu abandonar o uso do Expresso, um serviço de e-mail seguro desenvolvido nacionalmente, para no lugar contratar serviços da Microsoft que serão usados de 2016 em diante.
A regulamentação do MCI permanece como a principal agenda A ser alcançada, somada às agendas específicas relacionadas a cada tópicO coberto pela análise. O caso mais óbvio é a questão das exceções técnicas para a neutralidade de rede, mas outras questões como a privacidade, o acesso e o desenvolvimento da internet também precisam ser reguladas para facilitar sua implementação. Há um efeito perverso, no entanto, que é causado por conta da falta de tal ação. Muitas das boas práticas alcançadas – apesar de serem já aplicáveis – estão se tornando exceções, esperando pela regulamentação. A plena realização dos direitos conquistados não pode esperar outro ano.
Analise do MCI (PDF).